quarta-feira, 22 de junho de 2011

Pintura

Quando eu olhava para a janela imaginava que fosse um quadro. Mas não um quadro comum. Eu não sabia quem havia pintado, quais as tintas que foram utilizadas e, o que mais me impressionava, a técnica. Nunca conheci pintura, mas sempre pintei. Desde menina. Lembro-me de desenhar pequenos pontos em uma folha imensa de papel e dizer para todas as pessoas que encontrava que aquilo eram planetas salpicados num imenso universo, ou então formigas atrapalhadas no chão depois de algum incidente.
A verdade é que eu sempre me entendi como um anzol. E, a priori, essa imagem pode nada combinar com o começo desta história, mas, uma vez lançada a isca no oceano das possibilidades, jamais saberemos qual será o peixe do jantar.
À parte de minhas elucubrações a respeito da janela da sala de estar da casa de minha avó acontecia um evento singular. Meu tio acabara de se estabelecer de uma nova maneira frente à sociedade, agora ele era doutor. Minha família dizia que deveríamos comemorar este feito, afinal ele passara anos estudando incansavelmente uma particularidade de dado ser que, juntamente com os humanos e outros de diferentes espécies, habitava esse nosso planeta. Meu tio era doutor em camarão.
Recordo-me de ouvir uma ou duas piadas sobre tal conhecimento. “Todos nós entendemos muito bem de camarão, sabemos apreciar com devido respeito o bem que esta delícia faz para nosso estômago”. Uma tia minha não haveria de concordar. O que fora uma experiência agradável para um não seria para outro. Tal alimento desencadeara, certa vez, alergia tão incrivelmente forte em minha tia, que nunca vi tamanha semelhança entre a presa e o predador. Ficara vermelha e quente. Talvez ela tenha conhecido, melhor de que todos nós, a experiência da digestão.
Em meio aos sorrisos e longos abraços apertados, aquela janela quadrada retinha a minha atenção. Eu acredito que jamais saberia descrever tal momento. Era uma pintura. Quando o vento passeava, se comportava como pincel e ali eu experimentava uma nova combinação de espaços e cores. Os limites ultrapassavam a sua condição essencial. Eram revolucionários à luz do dia, lutavam e aceitavam a sua contradição com naturalidade e leveza. Eu era testemunha desta reinvenção instantânea.
Mas o que eu não sabia é que poderia ser mais do que isso. Enquanto passeava meus olhos nas molduras de ferro da incrível obra de arte, uma invasão destemida aconteceu. O primeiro sentido despertado foi a audição. Um grito agudo e arenoso causou a comoção do ambiente. Depois os olhos. O ruído sugou a atenção dos convidados. A sala parecia um museu. Silenciosa, atenta àquela pintura que antes apenas eu havia reparado. À quantas mãos se realizaria? Em seguida, o paladar. Alguém expressou seu gosto “Meu deus”!
Uma bola havia atravessado - como uma espada - o vidro da janela. Qual era o intuito daquele espetáculo? Passeei meu olhar para o canto da sala e encontrei dois meninos assustados. “Foi sem querer, pai, foi sem querer”. A pintura não era a mesma, a janela não saíra do lugar.
Enquanto uns recolhiam os cacos de vidro espalhados no piso e outros corriam ao resgate do brinquedo, aos poucos o crustáceo voltaria para o centro da questão. Eu, que nada concluí sobre o mistério da tela e da técnica, voltei para minha condição de anzol, peguei uma folha imensa de papel e desenhei pequenos pontos, que poderiam ser planetas salpicados num imenso universo, ou então formigas atrapalhadas no chão depois de algum incidente.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Eu estarei aqui















Você pode não acreditar. Você pode não se importar. Ou não ver.
Mas eu estarei aqui.
Você pode não gostar. Você pode até não querer. Ou não ouvir.
Mas eu estarei aqui.
Vou continuar cantando a nossa música.
Aquela que nos leva pro nosso quarto toda vez que eu respiro.
Aquela que é dueto
e que diz do desperdício de se amar e não poder.
Vou continuar cantando a nossa música.
Aquela que é dueto
e que diz das histórias que invento na minha cabeça.
Vou continuar cantando a nossa música.
Você pode não tocar. Você pode não mentir. Ou não sentir.
Mas eu estarei aqui.
A verdade 'is like a blossom that fades so quick'.
Eu viajarei pelo tempo até minha casa.
Eu viajarei pela melodia até meu corpo.
Eu viajarei por três dias e nada mais,
até relar na memória.
As vozes estão na parede.
Até relar na memória.
As vozes estão na parede.
Até relar na memória.
As vozes estão nas paredes e nos lençóis.
Eu estarei aqui.

http://www.youtube.com/watch?v=jdnVyOe1Pvg

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Saliências

Quero teu ciúme doente,
teu choro sincero,
teu desespero,
o apelo do órgão inchado
Teu velho teatro de adeus.
Teu velho teatro de adeus.

Quero tua crise de dor,
implorar teu amor,
desgraçar o meu peito,
pedir por respeito,
Teu velho teatro de adeus.
Teu velho teatro de adeus.

Quero virar o estômago,
a mazela do apego,
a discórdia do sopro
no ouvido, o duvido,
a nuca.

Vou dizer saliências,
dizer saliências
e perder paciências,
perder paciências.

Quero virar o estômago,
a mazela do apego,
a discórdia do sopro,
no ouvido, o duvido,
a nuca.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Cura mágica

O mundo fragmentado me faz tropeçar nas palavras. São informações, estímulos, notícias, sons, cores, gostos, texturas e cheiros arremessados em pouquíssimo tempo sobre minhas mãos. Um jato de conexão, um raio de interatividade, um relâmpago de comunicação e um blecaute na minha folha. Sabe a cegueira branca do eterno portuga, mestre dos tombos verbais, Saramago? Então, é desta mesmo que ‘estou a lhe escrever’. Olho para a faminta página vazia procurando dizer alguma poesia sobre as relações sociais. Tarefa difícil, sei eu, por isso precisei invocar a imagem de José e sua etimologia transviada genial nesta empreitada: curandeiro mágico.
E agora? Quer pergunta mais fadada a ser do que esta? Bom, depois de despejar estas duas conhecidas (in)conclusões sobre você, calço minhas luvas, minha cartola e minha serra e começo o espetáculo. Não, não será muito assustador, mas preciso do conhecido truque da mulher partida ao meio para ter alguma credibilidade. Devo acrescentar que este texto não procura uma resposta. Talvez ele apenas queira simpatia, afago, atenção e na pior das hipóteses, uma boa dose de paixão, podendo-se considerar até amor. Mas não fuja ainda, por favor. Eu tenho uma carta na manga para o grande final.
Tenho muitos melhores amigos. Com absoluta certeza. Para checar é só digitar meu nome completo em alguma página da internet. Aprendi com minha mãe a ser tecelã. Ela, confesso, demorou muitíssimo para me ensinar. Eu, contudo, já sei muito bem como balançar nas minhas redes sociais. Bendita tecnologia! Santa virtualidade! É fácil para minha mãe que, pacientemente, tem anotado em caderninhos ultrapassados todos os tipos de linhas e agulhas, dizer que o mundo cibernético mais afasta as pessoas do que as aproxima. “Vocês ficam horas na frente dessa tela conversando com estranhos e se esquecem de almoçar comigo”. Já para mim não é tão simples chegar a este ponto de vista.
Tenho muitos amigos. Com certeza. Por que ter um único amigo incrível se posso ter um monte deles? E o melhor de tudo é que estão sempre comigo. Não há abandono quando estou conectado. Assistimos aos mesmos filmes, ouvimos as mesmas músicas, lemos os mesmos livros, temos os mesmos ídolos, gostamos dos mesmos programas, somos apaixonados pelos mesmos aromas. E o melhor de tudo é que compartilhamos a nossa voz em tempo real. – Só um instante, preciso colocar meus óculos. É que tenho certo grau de astigmatismo. Pronto. Ah, já vou aproveitar e fechar as janelas, está esfriando, e em pleno verão, pode?
Tenho alguns amantes. Certeza. Não que eu seja a favor da banalização dos sentimentos, como fazem uns e outros. Não que eu precise me autoafirmar no momento em que contabilizo as pessoas de que gosto um pouco mais. Costumo dizer que são afinidades e oportunidades. É uma óbvia questão de probabilidade, mãezinha matemática: quanto mais pessoas eu conheço mais pessoas maravilhosas eu tenho a chance de conhecer. Faz sentido. Eu não devo explicações nesse aspecto. Só é preciso um único botão para que eu encontre um bom encontro feito de palavras e web cam. – Ai, estou começando a me cansar um pouco. Só um instante, leitor, vou tirar meus óculos. Eu tenho a vista cansada. Pronto. Ah, já vou aproveitar e abrir as janelas, está esquentando, em pleno inverno, pode?
Tenho um amante. Não, ainda não tenho o seu telefone e ele não sabe bem quais são as minhas intenções. Eu costumo deixar claro de quem eu gosto. Tenho muitas fotos em pastas novíssimas nos meus documentos, minhas imagens ou então nos arquivos recebidos. Nos encontramos todos os dias. É sempre bom. Dou risada, sinto-me bem. Fazemos juras de amor. Não, ainda não tenho o seu endereço. Ontem tive certeza de que gostou de mim. Acredita que curtiu a minha foto publicamente? “Vocês ficam horas na frente dessa tela conversando com estranhos e se esquecem de jantar comigo”. Minha mãe sempre foi bastante ciumenta. Eu também.
E agora? Quer pergunta mais fadada a ser do que esta? Bom, depois de despejar estas duas conhecidas (in)conclusões sobre você, tiro minhas luvas, minha cartola e minha serra de cena e encerro o espetáculo. Não, não foi muito assustador. Devo acrescentar que este texto não fez surgir um coelho branco. Talvez ele apenas queira tornar a assistente do mágico (in)visível. E, com palavras combinadas em imagens, almeje iludir todo o público. Mas não fuja ainda, por favor. Eu tenho uma carta na manga para o grande começo.
O mundo fragmentado me fez tropeçar nas palavras. São informações, estímulos, notícias, sons, cores, gostos, texturas e cheiros arremessados em pouquíssimo tempo sobre minhas mãos. Um jato de conexão, um raio de interatividade, um relâmpago de comunicação e um blecaute na minha memória. Sabe a personagem principal do eterno portuga, mestre dos tombos verbais, Saramago - o José da etimologia transviada - cuja espuma branca de cegueira não engole?
Eu não.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Xeque mate

Acordei e não me lembrei de colocar a máscara.

Levantei da cama. Calcei as pantufas ainda molhadas do banho do dia anterior. Os dedos congelaram naquela textura. Arrastei os pés enrugados riscando o chão num contínuo barulho ressoante e irritante até a porta do quarto. A casa estava silenciosa, provavelmente ainda todos dormiam depois do carnaval de ontem. Virei a cabeça para os lados na tentativa de encontrar alguém, um parente, um amigo, um amante. Só pude perceber o sol entrando pela janela lateral da sala que fazia um desenho intrigante no piso. Era um jogo de luz e sombra. Jamais havia percebido como os raios do astro desenhavam uma linha horizontal constante no chão. Pisei. Um pé ficou no lado escuro e o outro no lado claro. Olhei um instante para minhas pernas naquela posição e caminhei para o banheiro. Escovei meus dentes. Bochechei o produto de branqueamento e lavei meus olhos. Foi aí que olhei para o espelho. Fez-se um estrondo. Parecia que o mundo caíra de vez e rolara como uma bola de gude atirada pelos dedos de uma criança. Ouvi passos finos subindo a escada, agora estariam mais perto de mim. Não pude esperar até que chegassem. Voltei meus olhos ainda molhados para o corredor. Uma fileira de crianças passeava pela sala. Aproximei-me devagar franzindo o nariz para poder focar a imagem um pouco destorcida. Diante de mim milhares de meninos e meninas se enfileiravam. A sala aumentou. Ficou bem maior do que meus braços abertos. Quando percebi estava no meio da roda e pude ouvir as vozes infantis cantarolarem: era uma vez um gato xadrez.

Xeque mate.