quarta-feira, 28 de julho de 2010

Relato de quarta


Hoje é quarta-feira. O dia do meio. Metade de mim amanhece - sol a pino. Metade de mim anoitece - sombra a postos. Da cama deitamos e levantamos. Do leite, metade cheio, metade chateio. Toda semana é assim, um apêndice sem fim.

O Jardineiro

















Da palavra, na boca, o traço.
No corpo, no papel, na planta.
A curva dos dedos, a força nos dedos,
a tesoura que esculpe.
Podar não é podido.
Cortar tão pouco.
No galho não existe incapacidade.
Na palavra existe poesia.
Trajetos encurtados desandam tropeços.
Nos tropeços existe poesia.
Topar com o pé na pedra pode ser bonito.
Polir a pedra com o traço,
escrever semente de árvore,
cultivar palavra com as mãos,
faz florescer ávida a vida.

Imagem retirada do site http://www.estuario.com.br/
Texto: Rafa.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Dia do Amigo

Amizade é uma flor no deserto.
É um estar perto no olhar, na canção.
Amizade é se reconhecer no outro.
É um ser solto e amar, no coração.
Há quem diga que seja laço.
Há quem diga que seja benção.
Eu, por mim, e digo de prontidão,
tenho comigo que seja como a palavra,
singela presença na ausência. E comoção.
O amigo morará eternamente na minha casa.
No meu espaço, no meu silêncio, no meu cansaço.
E sorrirá na lembrança dos dias vividos.
Estará marcado na pele, nos poros, nos pêlos.
Amizade é gravar no semblante o momento.
É escrever no firmamento a cumplicidade,
é repartir o instante, a essência,
casar os olhares e dormir a solidão.
O amigo suspende o medo, não porque não existe,
mas porque divide o peso.
É pedaço da existência, inteiro que completa.
Eu agradeço, como quem padece perante um rio,
esse sentimento que torna fluida a vida.

Rafa.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O vaso


O vaso em cima da mesa.
Sempre vaso.
Sempre mesa.
As flores de barro no vaso.
De barro é a sala de espera.
Sempre espera.
Sempre espera.
De um dia vaso na janela.
Arte de Bruno Rímoli

quarta-feira, 14 de julho de 2010

No trilho do trem

No trilho do trem
corre a vida
roda a vida
passa a vida.
São rostos
e passos
e sonhos
e amores
que vem e que vão.
São calças
e saias
e olhos
e cores
que vem e que vão
que vem e que vão
que vem e que vão.
E no bater do coração do maquinista
há uma pista,um apito breve
que apresenta o final da estação.
Foto de Cristiano Moreira

terça-feira, 6 de julho de 2010

O nome Era

Ja passava da hora. O verbo, do dedo, não saía. Condoia na pele, no traço da boca, no franzir os olhos. Eu não experimentava luz. Seu rosto ardia em minha lembrança. Ardia a sua presença no passado. Aquele seu andar de cisco infantil. A respiração de formiga. Se uma brisa existisse - e eu rezava - se uma brisa existisse provavelmente a partiria no meio apenas com o sopro. De tão leve, seu nome era Pluma.
Seu nome era Sol. Ao meio-dia despertava um sorriso. Jogava a âncora e atracava com pés de astronauta. Aquela sua roupa cintilava toda a tarde de um cinza breve e tão pesado quanto minha consciência. Podia contar nos dedos quantos dias você me visitava. Chegava com seus cabelos soltos, envoltos de qualquer recibo, comprava algum lance de escada e vencia o meu aposento.
Seu nome era Flor. Enraizava seus gestos a minha cama. Nutria-se da minha condição para sugar a seiva daquela tarde. Era um banquete. Verde como seu caule, suas folhas, seus nervos. Tremia a terra num terremoto terrível, qual um carro viajando na face da lua.
Seu nome era Erva. Danava meus pés. Era a brisa - que eu tanto rezava - era a brisa que existia e passava. Como fora crescer assim? Como fora regada e agora apertava meu osso num abraço fatal? Como chamara a noite, o abismo, o pó? A tarde sucumbia aos poucos em seu nome.
Seu nome era Vela. Sua voz era o barco. Você tem vida na água. Mais uma vez você tem ventre de vento. A maré fica alta e quase me afogo nas palavras. Vem formando uma onda no horizonte. Vem a tempestade. Já era tarde. Já era hora. A ventania derrubou o vaso. Fechou a janela, partiu no meio o espelho.
Seu nome era Nome. Você chamava a atenção de minha invalidez. O tempo passara voando para mim e não lhe envelhecera. Continuava criança, espoleta, espingarda. O gatilho para o verbo abandonar meu dedo foi vê-la partir pela última vez. Olhou-me já verstida e limpa. Ajeitou o cabelo, retocou os lábios, pegou-me um copo de água, papel e caneta e deixou sua presilha.
Seu nome Era.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Página 14

Em 2009, para concluir o curso de Letras, realizei um trabalho sobre o poeta pantaneiro-universal Manoel de Barros. Aqui no blog colocarei, vez ou outra, alguns trechos, sem muita explicação, sem muita rima e, às vezes, sem muita vontade.

Página 14.


(...)em artes plásticas, admira principalmente Picasso, Miró e Braque, e no cinema os cineastas-poetas da imagem Akira Kurosawa, Luís Buñuel e Federico Fellini. Inclusive, em um de seus poemas, Manoel demostra tal admiração citando Fellini em um de seus versos:


7

Um dia me chamaram primitivo:
Eu tive um êxtase.
Igual a quando chamaram Fellini de palhaço:
E Fellini teve um êxtase.

(...)Em Manoel de Barros, a plasticidade do objeto está em primeiro plano - este objeto, no caso da poesia, é a palavra.
Manoel de Barros , como pintor-poeta, colore a tela-folha com combinações inesperadas de cores-palavras, e neste fazer artístico, pretende-as objetos novos, em um movimento de abertura a múltiplos olhares e realidades:

A gente sabia que a ema quase voa no correr.
Que a ema racha o vento no correr.
Eu tinha era vontade de rachar o vento no correr.

(...) Manoel 'monta' seus versos a partir das palavras, que são como peças pertencentes a uma colagem. Assim, o poeta sobrepõe, dobra, corta e cola as palavras quando as manuseia. Estes processos conferem ao poema sua materialidade.
A partir da construção desses versos, o leitor pode apreender imagens.

Imagem de Pablo Picasso.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O relógio


As horas escorrem por um pio.
O conta-gota tem voz na existência.
O conta-gota é itinerante como um pássaro.
As horas escorrem por um rio.
O conta-gota tem água na existência.
O conta-gota é itinerante como um peixe.
As horas escorrem por um fio.
O conta-gota tem as horas na existência.
O conta-gota é itinerante como a vida.
Rafa Rímoli